Erika Hilton (Português)
A DEPUTADA DIVA — A ENERGIA DEMOCRÁTICA BAFÔNICA
São Paulo — A deputada chega ao cabaré no centro de São Paulo e as portas de seu SUV preto se abrem. Ela desce acompanhada pela equipe de segurança que está com ela praticamente 24 horas por dia. Em 2022, com apenas 29 anos, Erika Hilton se tornou a primeira deputada trans preta na Câmara dos Deputados do Brasil. Agora, em seu terceiro ano de mandato, milhões de gays e garotas a amam. (read in English)
Chico: Você chegou com um segurança. Todos os deputados têm segurança?
Erika: Não, não é padrão. Algumas outras deputadas também pedem segurança, mas é mais um resultado da violência política de gênero. Eu tenho escolta por causa da quantidade de ameaças que recebo — ameaças de morte, discursos de ódio como racismo, transfobia, ameaças de estupro. Uma série de violências que acontecem online, o que torna basicamente obrigatório eu estar sob proteção constante.
Meu Deus.
Sim, e eu preciso proteger meus endereços, evitar eventos públicos com minha família — tenho medo de expô-los. Teve uma situação horrível há um tempo em que os dados da minha família vazaram.
Como assim? Onde vazaram?
A polícia me disse que foi coisa de deep web, dados comprados e vendidos no mercado negro. Tipo, os dados da minha mãe, o número de telefone da minha irmã…
O quanto essas ameaças te consomem mentalmente?
Eu falei com minha equipe jurídica que não queria mais ser atualizada sobre cada caso. Decidi que não queria saber toda vez que algo assim acontecesse.
É, você precisa se proteger mentalmente também.
Claro, mas eles não conseguem me blindar totalmente. Eu ainda estou nas redes sociais, ainda leio minhas mensagens, eu mesma cuido da minha comunicação política. Então, eu vejo o ódio online o tempo todo. Já devem ser centenas de casos.
Você vê alguma solução para essa questão?
Nós, da esquerda, precisamos fazer o dever de casa se quisermos combater todo esse ódio e essa política do medo. Também não dá pra ignorar — é importante denunciar. Hoje, é uma falha de comunicação nossa.
É curioso você falar da falha de comunicação da esquerda, porque você é justamente um exemplo de sucesso, né?
Bom, acho que não dá mais pra fugir das redes sociais. Antes, rádio, jornal e TV eram os principais meios de comunicação. Tinham uma influência enorme. Mas hoje temos a internet, as redes, as plataformas, que podem ser usadas para o mal. Mas também acho que podem ser usadas para o bem.
Como você usa as redes sociais a seu favor?
Quando me candidatei a vereadora enfrentávamos a pandemia, então tivemos que investir pesado em uma estratégia online. Foi aí que percebi o alcance e o impacto que podíamos ter nesse espaço. Como indivíduo, você não pode estar fisicamente em todo lugar, mas seu perfil nas redes pode falar com milhões. Um dos meus vídeos teve seis milhões de visualizações quase instantaneamente. O alcance total provavelmente fica entre 130 e 150 milhões.
Com uma mensagem clara e acessível.
Muito clara, muito popular e fora do estereótipo político. Meus críticos tentam dizer que não sou séria, que não estou alinhada com os trâmites do Congresso, que não faço política do jeito “certo”. Acho isso um absurdo, porque eu entrego resultados. Já tentaram até dizer que eu não apareço pra trabalhar. (risos) Mas isso se desmente fácil — é só olhar minha frequência no Portal da Transparência. Mentiras não resistem à luz da verdade.
Por que você acha que seu estilo de comunicação recebe tanta crítica?
Porque chega a lugares onde políticos tradicionais e a própria esquerda não conseguem chegar. Eu ando na rua e senhoras, crianças, adolescentes, até evangélicos me param pra tirar foto ou contar suas histórias. No Brasil, essa não é a imagem típica de um político.
É mais a de uma popstar.
Exatamente.
Numa entrevista recente, você disse que queria ser artista quando era criança.
Sim.
E a política foi…
Uma consequência da minha vida e da minha história. Eu sempre quis ser artista, e acho que hoje sou uma artista política.
Total. E isso te diferencia.
O estereótipo do político no Brasil ainda é um homem velho, corrupto, que aparece a cada quatro anos na eleição e nunca muda a vida de ninguém. Ninguém pensa em jovem, negra, trans, descolada, agente de mudança. Essa não é a imagem que vem à cabeça.
Não, com certeza não.
Eu não quero essa imagem tradicional atrelada a mim. Quero ser associada ao que as pessoas realmente gostam — TV, entretenimento, divas pop, horóscopo, tarô, moda, leveza. E isso não quer dizer que eu não esteja apresentando e aprovando projetos importantes.
Quais são os projetos mais importantes que você levou ao Congresso?
A PEC da redução da jornada de trabalho é minha. O debate sobre cidades resilientes é meu. Refugiados climáticos, meu. Política pública digna pra população em situação de rua — essa foi aprovada e sancionada pelo presidente Lula. E esse ainda é meu primeiro mandato. Criei o fundo municipal de combate à fome aqui em São Paulo. Puxei a CPI da violência contra pessoas trans. Sou uma das deputadas que mais apresentou projetos de lei.
Você parece estar ocupada.
Só porque eu faço política de um jeito mais diva pop não quer dizer que eu não esteja fazendo o trabalho. Mas no Brasil, isso não é o que se espera de um político.
Deu o que falar quando você — uma política — desfilou na São Paulo Fashion Week.
Exato! E eu já fiz Fashion Week mais de uma vez.
Por que você acha que quase quatro milhões de pessoas te seguem nas redes sociais?
Não é porque sou uma política conservadora de terno feito sob medida! Não, não, não. Eu trato de temas políticos sérios de um jeito que ressoa. Vou no TikTok, sigo as trends, faço as dancinhas. Isso me humaniza e me conecta com as pessoas. Posso falar de temas sérios sem perder a audiência — e é isso que a esquerda perde muitas vezes: a audiência. É aí que a extrema direita ganha — com narrativas fáceis, falsas, que tocam nas emoções adormecidas das pessoas e capturam a atenção.
Você está liderando um dos debates mais relevantes do Brasil em 2025, que é, como você mesma disse, a PEC da redução da jornada de trabalho. Qual a importância desse tema?
O Brasil tem uma jornada de trabalho profundamente ultrapassada, obsoleta, que só prevê um dia de descanso por semana. Depois de muito debate, estamos propondo uma jornada padrão de cinco dias com dois de descanso, 40 horas semanais. Quando apresentei, todo mundo disse que eu era louca, mas agora está ganhando força, está explodindo, na verdade.
Eu trato de temas políticos sérios de um jeito que ressoa. Vou no TikTok, sigo as trends, faço as dancinhas.
Está unindo muita gente de diferentes espectros políticos.
A classe trabalhadora — além de esquerda ou direita — está dizendo: “Sim, eu mereço mais descanso. Sim, eu mereço não morrer de tanto trabalhar.”
E colocou a extrema direita na defensiva.
Eles estão envenenando o debate com informações tendenciosas, espalhando medo sobre perda de empregos e inflação. Historicamente, antes de toda reforma trabalhista, como quando abolimos a escravidão, quando trabalhadores domésticos ganharam direitos, quando o direito a férias foi criado — em todas essas situações, o argumento era “a economia vai colapsar”. E agora a extrema direita repete esse mesmo discurso. Tudo o que eles fazem é proteger os direitos dos patrões. Só querem continuar lucrando, lucrando, lucrando — sem se importar com o custo humano.
Como é ser a primeira mulher trans negra eleita para a Câmara dos Deputados?
O que senti quando cheguei lá foi solidão. Muitas vezes achamos que estamos seguros entre amigos, mas mesmo entre amigos, às vezes é difícil encontrar aliados. Cada um tem seus valores, sua visão de mundo — e muitas vezes essa visão está contaminada por racismo, transfobia, homofobia. Até na esquerda.
E isso se parece com sua criação, né? Você já falou abertamente sobre ter sido expulsa de casa, sobre um período como trabalhadora sexual. A maioria dos políticos esconderia isso.
Bom, eu não acho que isso me descredibiliza — me engrandece. Acho admirável ser uma mulher trans que foi expulsa de casa, que fez trabalho sexual. Sim. Pra sobreviver, pra comer, pra se vestir, pra ter onde morar. Por que não dizer isso?
Mhm.
Aos olhos de uma sociedade hipócrita e higienizada, Erika Hilton é uma deputada, fala bem, é polida. Está mais próxima da imagem idealizada da mulher cis. Mas e a mulher trans na esquina? Um corpo com os seios à mostra, silicone industrial, modificações — ela não merece o mesmo tratamento, a mesma dignidade, as mesmas proteções que são oferecidas a mim? Me preocupa essa ideia de criar um conceito de mulheres trans “aceitáveis” — as que merecem, as que são permitidas — e ignorar as outras. Se aquelas meninas tivessem as mesmas oportunidades, seriam pessoas incríveis também. Ou continuariam sendo incríveis trabalhadoras do sexo — por que não? Qual é o problema? Eu não vejo problema algum.
Você está certa.
Veja, elas merecem proteção, merecem cuidado, merecem políticas públicas. Não merecem violência — nem do Estado, nem da sociedade. E podem ser trabalhadoras do sexo, ganhar dinheiro com seus corpos — e eu não vejo problema algum nisso.
Isso me lembra uma frase muito poderosa — ‘Eu sou Erika Hilton para que outras não precisem ser Erika Hilton.’
Exatamente.
O que isso significa?
Significa que eu passo pelo que passo, aguento o que aguento, conto o que conto e defendo o que defendo para que a minha história não precise se repetir. Eu sonho, acredito em um mundo, em um Brasil, onde uma menina de 14 anos não seja rejeitada pela mãe apenas por ser quem é. Onde ela não precise acabar numa calçada fria. Então, embora eu tenha orgulho da minha história — foi ela que me fez ser quem sou hoje — eu só tenho orgulho porque sobrevivi a ela. Mas não é uma história que devemos replicar mundo afora. Pelo contrário. Acho que é uma história que precisa acabar. Quero garantir que meninas como eu, que não tinham referências — assim como eu não tinha — agora possam tê-las. Que uma menina trans de 10 ou 12 anos não pense que seu único futuro é uma calçada, uma cela ou fumar crack. Quero que elas acreditem que podem ser deputadas, modelos, médicas, juízas, promotoras, professoras — o que quiserem. Mais do que isso, quero convencer suas famílias de que ELAS PODEM ser qualquer coisa, que ELAS MERECEM isso.
Exatamente. E, mesmo na posição que você conquistou, o governo americano cometeu um crime contra você recentemente.
Olha, foi chocante, porque a gente já sabia de todos os movimentos do governo americano contra a população trans, mas nunca imaginamos que chegaria ao ponto de cruzar fronteiras. Nunca.
Explica o que aconteceu?
Fui convidada para fazer uma palestra em Harvard. Aí, de repente, tentam me negar o visto diplomático. Ok, envio toda a documentação exigida. E então eles dizem: ‘Tá bom, vamos emitir o visto diplomático, mas, por conta da nova administração, o sexo vai constar como masculino.’
E como reagir numa situação dessas?
Pois é, fiquei horrorizada. Em choque. Demorei alguns dias pra processar e entender que passos eu devia tomar. Percebi que precisava acionar o Itamaraty, o presidente do Brasil e notificar a ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Mas quase nada foi feito. O processo na ONU pode levar anos e duvido muito que alguém vá bater de frente com os EUA por desrespeitarem o gênero de uma deputada brasileira.
Agora indo pra parte divertida — conta pra gente da Tia Erika Hilton!
Uau! (risos)
É recente, né?
Sim, é recente.
Quão recente?
Um ano e quatro meses.
E o que você descobriu sobre si mesma nesse processo?
É a primeira vez que sou tia. E meio que uma segunda mãe também. Minha irmã não trabalha, então eu que cuido das grandes decisões, tipo escola, sabe. É uma loucura. E é uma das coisas mais maravilhosas que já vivi. É um amor tão puro. Tão leve. Mas sou uma tia problemática — porque eu mimo total. E nunca digo não. (risos)
Tem um outro lado, tipo a preocupação?
É um amor meio louco, porque também dói. Você vê uma criança tão pequena num mundo tão cheio de problemas. Um menininho negro, e você pensa: ‘Meu Deus… o que ele vai enfrentar?’ Agora eu sinto que preciso lutar muito, muito mais — pra construir um mundo um pouquinho melhor pra ele. Então sou essa tia babona. Mas aí tem situações em que minha exposição pública atrapalha. No mês passado, ele teve a primeira apresentação escolar e eu não fui. Não quis ser associada a ele na escola pelos outros pais. É no interior, numa escola particular, numa região de classe média alta. E eu pensei: ‘Essas cidades são bem bolsonaristas.’
Olha, o Brasil não suporta Erika Hilton.
Foi uma decisão fácil?
Não, foi muito difícil. Bem difícil. Minha irmã queria muito que eu estivesse lá. Perdi a primeira apresentação dele. Foi insuportável. Mas vi as fotos. Meu namorado foi e filmou. Eu vi os vídeos. Eu estava na casa deles, esperando eles voltarem.
Que pena. Sinto muito. Deve ter sido ruim.
Foi sim.
E você mencionou seu namorado. Proteger ele também é uma preocupação? Como é a vida amorosa de uma deputada?
Com certeza é uma preocupação — quero proteger todo mundo que não escolheu estar na política. Ele é um homem trans que já sofre ataques nas redes sociais porque cria conteúdo. Mas eu sempre fui muito reservada. Não sou uma pessoa que grava tudo ou que vive compartilhando a vida pessoal. Eu preciso ter meu espaço privado, e um dos principais motivos pra não expor ele nas minhas redes é pra protegê-lo. No fim, é sobre cuidado.
Como é ter acesso a coisas que você não tinha anos atrás? Na última vez que falamos disso, você tinha oito lace fronts. Eu não vou dizer “peruca” — você disse que não é chique. (risos)
No começo foi uma loucura — eu não sabia lidar. Ficava achando que tudo ia acabar. Isso é reflexo da pobreza — o medo da escassez, a síndrome da impostora. Ainda sinto isso às vezes, e trabalho isso na terapia. Mas tem um lado muito positivo — poder construir a Erika que eu sempre imaginei. E eu nunca busquei ser uma diva, mas de repente virei uma — e gostei.
A coisa da diva veio naturalmente, né?
Eu amo coisas bonitas. Eu amo luxo — e defendo o luxo desde que ele se torne acessível a todos. Nunca disse ‘Vamos todos ser pobres.’ O luxo existe. Posso até apoiar uma sociedade anticapitalista, mas quero gravar conteúdo com qualidade. E se o iPhone me dá a melhor imagem pra comunicar, então me chamem de “socialista do iPhone”. Porque EU SOU uma socialista do iPhone. Prada, Gucci, Balenciaga, Bottega…
Com um vestido Diesel hoje.
E uma bolsa Prada também. (risos) O negócio é — eu não tenho casa, não tenho carro, não tenho terreno. Não tenho nada! Não, eu tenho bolsas caras, roupas caras, cabelos caros. É nisso que eu invisto. E não vejo contradição nenhuma. A verdade é que eu recebo mais atenção do público do que colegas que me criticam enquanto fazem cosplay de pobreza e ganham o mesmo salário que eu.
Qual foi a última coisa que você comprou?
Um monte de roupa. Tenho sérios problemas com compras. Compro demais e divido a fatura em seis cartões. (risos)
Agora uma pergunta bem séria — você tem 32 anos. Aos 35, estará apta a concorrer à Presidência do Brasil. Você se imagina sendo eleita?
É uma possibilidade, mas se o Brasil elegeria alguém como eu, aí já é outra história.
O Brasil está em um momento difícil.
O mundo todo está. Precisamos de um trabalho de base muito profundo pra chegar num ponto de justiça real. Se um dia eu me sentir pronta, e olhar pra minha trajetória no Congresso e ver que mudanças reais foram feitas, talvez. Mas agora, já é como ser jogada aos leões.
Por quê?
O Brasil é racista. O Brasil é transfóbico. Olha, o Brasil não suporta Erika Hilton. A bolha que elege, apoia e legitima Erika Hilton é uma parte grande do Brasil, uma parte imensa. Mas não é todo o Brasil. Não, o Brasil ainda odeia a ideia de que essa mulher tenha voz, esteja na TV, seja respeitada, ocupe um cargo político, enfrente a corrupção e o status quo. O Brasil ainda precisa fazer seu dever de casa. Precisa limpar a alma. Construir o caminho pra esse futuro onde uma mulher preta e trans possa ser presidente. Mas eu acredito que estamos colocando os tijolos. Estamos construindo esse novo Brasil, devagar, dia após dia.
E hoje, estamos falando sobre isso. Olha o quanto você está ocupada espalhando a mensagem!
Eu sei. Fiquei em Brasília a semana toda e aí na quinta fui pro Rio só pra gravar um programa de TV. Sexta, agenda completamente lotada. E hoje, tô voltando do interior, onde participei de atividades numa universidade.
Hoje mesmo?!
Sim. Mal tive tempo de me trocar antes de vir pra cá.
Você está deslumbrante.
Originally published in BUTT 37